A liberdade de expressão é muito sagrada para ser comparada aos crimes praticados por gabinetes de disseminação do ódio. Uma simples verificação destes perfis no Brasil é suficiente para perceber a deturpação total do uso desta prerrogativa constitucional para tentar salvaguardar a prática dos mais variados crimes tipificados à exaustão na nossa legislação.

O artigo 5º da Constituição Brasileira é claro na proteção de um dos direitos fundamentais de todas as pessoas: a liberdade de expressão. Esta garantia está presente nas legislações dos países democráticos, assegurando que o Estado não pode subtraí-la de ninguém e que todos os cidadãos têm o direito de manifestar livremente suas opiniões. Atuo como jornalista há cerca de 30 anos e sempre defendi a liberdade de imprensa que está diretamente ligada à liberdade de expressão. No caso do jornalismo profissional, a Constituição também assegura o sigilo da fonte para que não ocorra qualquer perseguição de órgãos de Estado ou ameaças de pessoas eventualmente prejudicadas pela divulgação de notícias. Até aqui parece estar tudo muito claro. Uma cláusula pétrea da Constituição, a qual o Brasil tem se esforçado em cumprir.

Porém, nos últimos dias, gerou um grande debate no país dois fatos que se cruzaram: a CPMI das fake news no Congresso Nacional e a decisão monocrática do Ministro do STF Alexandre de Moraes de determinar busca, apreensão e até a suspensão de contas em redes sociais de pessoas que estariam propagando fake news de modo sistemático, inclusive em relação ao coronavírus. A mesma decisão fez a Polícia Federal vasculhar casas e escritórios de supostos financiadores de difusão de notícias falsas, notadamente um grupo que atuaria muito próximo ao presidente Jair Bolsonaro e chamado de gabinete do ódio. Este grupo, pelas investigações realizadas até aqui, estaria em ação desde as eleições de 2018.

Ao logo de minha vida profissional, além de produzir notícias com a busca constante da verdade dos fatos, também mantive vários espaços de opinião. Nesta trajetória, diversas vezes fui interpelado por pessoas que se sentiram prejudicadas por alguma informação divulgada ou por comentários realizados. Faz parte do dia a dia do jornalista ser pressionado e questionado. Também já fui processado e absolvido. Isto deixa claro que, se o meu direito à livre expressão existe, também coexiste o direito de alguém que sinta sua honra prejudicada de buscar uma reparação nos órgãos competentes: Ministério Público e Poder Judiciário. Ou seja, o exercício da liberdade de expressão não é um salvo-conduto para que eu – ou qualquer outra pessoa – possa sair por aí utilizando-se das redes sociais e dos meios de comunicação para destruir inimigos. Há contrapesos na democracia e também existem no exercício da liberdade de expressão. E assim deve ser para que não tenhamos uma ditadura da palavra, um reinado absoluto da opinião destruidora e inconsequente. Noticiar e opinar significam assumir responsabilidades civis e penais em modo permanente. Isto vale para todos os meios de comunicação, para os jornalistas profissionais e deveria valer também para todas as pessoas que ousam se aventurar na produção de qualquer conteúdo disponibilizado nas redes sociais.

A liberdade de expressão vai até o limite no qual alguém tenha sua honra e dignidade atingidas. A partir deste momento entramos num outro aspecto legal previsto nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal. Caluniar alguém imputando-lhe falso crime, difamar alguém imputando-lhe fato ofensivo à reputação e injuriar alguém ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, são crimes passíveis de prisão. Quando calúnias, injúrias e difamações são realizadas de forma sistemática, como em uma linha de produção e na maior parte das vezes com o uso abominável da covardia anônima, isto trata-se de um crime. Não é exercício da liberdade de expressão. Sem utilizar meias palavras: é um crime fartamente tipificado. Caluniar, injuriar e difamar utilizando-se do argumento da liberdade de expressão é também no meu entender uma desonestidade intelectual. Muito comum em campanhas eleitorais no Brasil com as vistas grossas dos órgãos competentes, este comportamento não pode tornar-se prática corriqueira com aval de governantes para destruir adversários e plantar ideias fascistas e ditatoriais utilizando-se de fake news. Hoje esta guilhotina de reputações se utiliza de robôs para driblar os algorítmos das redes sociais.

A sociedade não pode aceitar estas práticas de forma passiva, considerando normal o abuso, o desrespeito e o xingamento como práticas normais do convívio social. O dano provocado às vítimas, normalmente adversários políticos ou quem ousa discordar de suas ideias, é irreversível. Na maior parte dos casos, as pessoas responsáveis por estes perfis estão ocultas, tornando difícil o rastreamento de responsabilidades até mesmo para as autoridades que precisam investigar, instruir e julgar. Paralelamente, as grandes plataformas digitais se eximem, alegando que são apenas os usuários os responsáveis pela produção do conteúdo. Uma meia verdade que tem prevalecido nos tribunais pelo mundo afora.

Em resumo, a liberdade de expressão é muito sagrada para ser comparada aos crimes praticados por gabinetes de ódio espalhados pelo Brasil e pelo mundo afora. Uma simples verificação destes perfis é suficiente para perceber a deturpação total do uso desta prerrogativa para salvaguardar a prática dos mais variados delitos tipificados à exaustão na legislação brasileira. Cabe à sociedade, além de denunciar esta prática, utilizar mais seguidamente o bloqueio destas contas a fim de impedir que continuem a disseminar o ódio que poderá nos levar ao caos se não houver o mínimo de respeito às diferenças. Além de bloqueá-las tenho utilizado das ferramentas de denúncia das redes sociais para alertar do abuso que estão cometendo. Isto vale para a direita, vale para a esquerda. Ambas, principalmente nos seus extremos, se apropriaram da máquina de moer reputações das redes sociais para se esconder atrás de perfis falsos, trolls e bots. Desmascará-los e tipificá-los como criminosos é o mínimo que uma sociedade deve fazer para defender o real exercício da livre expressão do pensamento. Todo mundo pode dizer o que pensa, mas deve responder depois sim, seja por suas palavras, seja pelos seus atos, com RG e CPF se houver cometimento de crimes. É o mínimo para mantermos um estado democrático de direito, pois a liberdade de expressão não é um salvo-conduto para mentir, caluniar e difamar impunemente.

Evandro Fontana – jornalista

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