Ninguém tem dúvidas de que o mundo será bem diferente após a pandemia de coronavírus. Entramos num cenário inesperado, como se tivéssemos saído do planeta Terra e entrado em outra galáxia. A confrontação com o desconhecido, a contagem diária de vítimas, o isolamento social. Tudo nos faz refletir com maior profundidade a respeito da existência, dos valores e da fragilidade que nos regem. Sabemos que o convívio com os outros passou a ter um valor muito maior a partir de agora. Tudo o que é escasso vale mais. Mas o preço de um distanciamento forçado nunca havia sido apresentado de forma tão cruel. Já deixamos de ver os pais por motivos banais. Mas nunca os abandonamos em tempos de Páscoa. Já deixamos de sair com os amigos por compromissos mais urgentes, mas jamais deixamos de estar perto deles de tempos em tempos.

Estamos suportando um confinamento interminável aqui na Itália. Época de lentidão e de aprendizado. Meu filho há quase dois meses em casa, entre sonos demorados e bolas de futebol cruzando a sala, ali entre o sofá e a parede, tirando fininhos da lâmpada. O sistema home office é frequentemente entremeado por escapadas até a geladeira ou longos passeios até a janela para ver uma solitária réstia de sol. Sorte não termos uma balança funcional. Até temos, mas é difícil acessa-la. Como não é prioridade agora, deixa pra lá.

Já vi muitas coisas nestes meus 50 anos de vida. Nasci em julho de 1969 e com poucos dias de vida o homem pisou na lua. Estava no microfone de uma rádio quando o World Trade Center foi derrubado por Bin Laden. Reportei o último sermão do Papa Bento 16 na Praça de São Pedro. Até vivi para ver o Inter de Porto Alegre ser campeão do Mundo ! E acompanhei o nascimento de dois filhos lindos. Tudo fica marcado em nossas vidas. Assim como ficará marcado para sempre o impacto do covid-19.

A cada dia aqui em Milão, capital da Lombardia, torcemos para que o número de contagiados e de mortos diminua. Que a tal curva desça e nunca mais suba. Tristeza sem fim quando vão para as estatísticas 600 mortos num único dia. São famílias, são pais, avós, tios, filhos. Cada um destes adoraria ter um pouquinho só a mais de ar para respirar. Tudo porém se foi num sopro violento, sem dar tempo de despedidas. Certamente haverá culpados pela falta de zelo. Eles serão identificados na hora certa e pagarão caro por não tomarem os cuidados devidos imediatamente.

A ciência busca explicar, as religiões se esforçam para encontrar significado e nós todos, entre quatro paredes, meio desnorteados como pugilistas recém nocauteados. Muitos já sem emprego e sem esperança. Aí que percebemos que o otimismo em certos momentos também tira férias. Resolveu tirar um período acumulado e não disse quando volta. Os sorrisos fáceis viraram testa franzida e olhos esbugalhados.

Quando vejo o Brasil, tão amado e querido apesar de tudo, fico estupefato com a politização da doença. Com o populismo barato. Com a disputa polarizada e os argumentos estéreis. Com a negação das evidências. Fico preocupado quando vejo que a Europa se curvou para um simples vírus e que a Organização Mundial da Saúde com seus milhares de experts não dimensionou adequadamente o problema. Até os Estados Unidos e seus investimentos de 600 bilhões de dólares por ano no setor de defesa se curvaram.

E o Brasil ? O que pensar destas ordens e contra-ordens vindas de Brasília e dos estados ? Que tipo de sentimento ter quando grandes empresas demitem funcionários às pencas para preservar seu caixa justamente no momento em que eles mais precisam delas ? Não era esta a hora mais nobre para utilizar seus fundos de reserva ? Não era este o tempo certo para mostrar na prática a solidariedade e o respeito à vida tanto pregados e tão pouco praticados ? Abro uma exceção para os tantos empresários – acredito até que sejam a maioria – que se colocam na linha de frente, ajudam, preservam empregos e colocam a vida de seus funcionários acima dos fugazes interesses econômicos que, no fundo, pouco ou nada valem em tempos de coronavírus. Exceção também para os que não têm um fundo de reserva. E são muitos, principalmente os pequenos. Mas o risco de retomar a produção e não ter para quem vender é altíssimo, sobretudo no Brasil. Quando se fala em roda da economia, nunca esqueçamos que são os consumidores, com dinheiro no bolso, que dão o empurrão mais forte e por primeiro. Todos os empresários e governantes com a caneta na mão precisam ter isto em mente.

Numa hora de união para enfrentar um inimigo poderoso, o que menos se espera é a transformação do isolamento social em egoísmo barato. Seja de governantes, empresários ou do mais humilde funcionário. Cuidar das pessoas, sejam elas jovens ou velhas, com comorbidades ou sem, é estar do lado certo da história. E disto jamais deveríamos abrir mão. Custe o que custar. Compatibilizar o cuidado com a saúde e o retorno da economia será o grande desafio. Mais êxito terá quem souber que sem união de propósitos ninguém sairá vencedor. Vale para o Brasil, mas vale para o mundo. E para nossa humilde casa também.

Evandro Fontana é jornalista e mora em Milão, Itália